quinta-feira, 5 de março de 2009

Quinze anos não são quinze dias



Há quinze anos, minha vida era bem diferente. Eu estava na escola e ainda nem tinha certeza do que eu queria ser quando crescesse. Mas algo era constante: minha vontade de, pela primeira vez na vida, ganhar um cachorrinho.

Eu já havia pedido aos meus pais algumas vezes, e a resposta era sempre a mesma: “não, filha, você não vai cuidar”. Por mais que eu não admitisse, no fundo sabia que era verdade. E ficava chateada com a negativa. Houve uma vez em que minha mãe chegou a me oferecer um coelho no lugar. Isso foi um pouco antes da Páscoa.

Naquele 21 de abril, houve um aniversário. Era a festa de um amigo, Dalton. E, entre os convidados presentes, minhas amigas Daniella e Karine estavam aflitas porque sua Petty estava prestes a ter uma ninhada, junto com seu Tutti. E ligavam a toda hora para casa, querendo saber novidades. Foi após um desses telefonemas que elas vieram gritando pela casa: “nasceram!”. Confesso que não lembro a quantidade de filhotes. Mas fiquei feliz por minhas amigas.

Nos dois meses seguintes, fui duas ou três vezes visitar minhas amigas. Éramos realmente muito ligadas, e eu simplesmente adorava pegar aqueles pequenos poodles no colo. Elas falavam o tempo todo sobre como os filhotinhos estavam indo embora aos poucos. E foi às vésperas do meu 15º aniversário que Dani veio falar que faltava apenas mais um bebê, pretinho (mas que, segundo ela dizia, ficaria cinza, pela coloração da pele).

Estávamos no intervalo da aula de japonês e lembro exatamente o olhar de Dani quando teve a idéia: “por que você não fica com ele??? É perfeito; minha mãe se acalmará porque finalmente acabarão os filhotes... e nós não ficaremos tristes, pois o pequeno ficará perto de nós, com uma amiga!!! Você precisa aceitar!!!”. Falei que meus pais não deixariam, mas ela viu como fiquei tentada com a proposta – e, assim, as duas irmãs decidiram falar diretamente com meu pai, assim que ele chegou para me buscar.

Uma coisa era certa: Dani e Kuri sabiam como convencer. Seu jeitinho doce amaciou papai, que, para a minha surpresa, aceitou, caso mamãe também fosse a favor. E mamãe concordou, sob a condição de que eu seria a responsável pelo cachorrinho. Lembrando, sempre, que um cachorro não era descartável: ele viveria muito tempo e eu não poderia simplesmente “enjoar” dele.

Dois dias depois, no exato dia de meu aniversário, eu voltaria do nihongakô com uma bolinha peluda e pretinha. Lembro que preparamos o porta-malas da Belina com papelão e uma toalha, para que ele não viesse no banco. Recordo-me das curvas, em que o pequenino escorregava de um lado para o outro sobre o papelão. E de como ele vomitou, coitadinho, enjoado da viagem para casa.

Já em casa, preparei uma casinha para o filhote. Mais uma toalha; mais uma caixa de papelão. E outra caixa na porta da cozinha, para inibir a passagem do peludinho às outras dependências da casa. A ração era um pozinho marrom fedorento que, misturado à água, formava uma papa nojenta, mas que o filhote parecia apreciar.

As primeiras noites não foram fáceis. Ele sentia falta de seus pais, e chorava bastante quando ficava sozinho. Eu permanecia perto dele, fazendo carinho, até que adormecesse. Só então eu podia apagar as luzes e ir dormir.

Os dias se passavam e eu não conseguia decidir o nome de meu bebê. Sim, porque, sob tantos cuidados, a gente começou a brincar que ele era meu filho; meus pais eram seu ditian e batian; meus irmãos eram tio e tia. Até que um dia eu passei dentro do carro olhando as fachadas das lojas. Foi quando li “Milano”. E, não sei por quê, pensei no personagem francês Milou, o cachorrinho do Tintin. E decidi: Milú.

O nome foi motivo para brigas, até. Minha irmã falou sobre como Milú não poderia ser acentuado. E eu dizia: “é nome próprio. Pode ser de qualquer jeito. Temos uma prima Monica sem acento, ué.” Discutimos até mamãe intervir: “deixe-a. O cachorro é dela; ela decide como escreverá o nome. Que diferença faz???”. É, acho mamãe incrivelmente sábia quando ela fica do meu lado.

Milú era realmente divertido. Uma bolinha de pêlos ativa, que corria para lá e para cá. E nos entretia escorregando pelo azulejo da cozinha e da área de serviço. Depois que recebeu todas as vacinas, comecei a sair três vezes ao dia com ele. Ele ficava enlouquecido e gostava de correr na grama. Bom mesmo foi quando descobrimos aquela correia retrátil, que esticava bastante para dar mais liberdade a ele. E essa liberdade foi sendo cada vez mais conquistada, inclusive dentro de casa. Aos poucos, ele foi “se infiltrando” na sala.

Para mim, tudo era descoberta. Durante a minha infância, tive muito medo de cachorros. Era aquela criança que ficava histérica ao ver que algum cão se aproximava. Com direito a subir na mesa e tudo mais. Sabe-se lá como ou por que, perdi o medo. E me tornei uma verdadeira fã desses animaizinhos. Antes do Milú, eu nunca tinha visto um cachorro dormir. Nunca tinha presenciado um espirro. Não fazia idéia da necessidade de escovar seus pêlos diariamente. Não sabia como o instinto os fazia querer esconder guloseimas, como ossinhos ou biscoitos. Meu bebê costumava “cavar” os sofás, colchonetes e tapetes, depositar seu presente e, depois, “empurrar” a terra imaginária para cobri-lo. Ele era um filhote curioso e assustado. Fuçava o que não devia; entrava onde não podia. Foram várias as vezes em que mamãe o tirou de baixo da geladeira. De mansinho, chegava perto de tudo, mas tinha medo de barulho. A porta de correr de ferro era sempre um motivo para sobressaltos e correrias. Ficava com as orelhas em pé quando ouvia cachorros na TV – e se aproximava interessado de onde saía o som. Demorei a conhecer seu uivo, mas houve noites em que ele resolvia saudar a lua, mesmo de dentro de casa. Vai entender...

Era eu quem trocava os jornais de seu cantinho, dava comida e água. Eu mantinha a rotina de passear e dava banho – no tanque ou no chuveiro. E lavava suas patinhas, focinho, piu-piu e bumbum, a cada retorno da rua, para que pudesse ter trânsito livre nos sofás e camas da casa, sem perigo de sujar tudo. Mas eu passava boa parte dos dias fora, fosse por causa da escola ou das atividades extracurriculares. Então, Milú acostumou-se mais com a presença de minha mãe. E, graças a isso, ele adotou mamãe como sua dona. Esse também foi o motivo por que ele gostava de roubar os chinelos dela, mais do que os dos outros membros da casa. E ela já nem se importava mais. Era comum sair de casa com seus chinelos furadinhos ou roídos. Não bastavam brinquedos mastigáveis. Os chinelos eram mais interessantes.

Ficou intrigado quando cheguei em casa com a hamster que ganhei de minha prima. Zíngara tinha hábitos noturnos, mas, Milú, intrigado, ficava de olho na gaiola o dia inteiro, esperando que ela saísse de sua casinha. Quando ela resolvia correr na rodinha, ele enlouquecia. Ficava em pé para chegar perto e só sossegava quando o pegávamos no colo para que olhasse um pouco a pequena ratinha. E ela era brava, arrepiava-se todinha e me mordia toda vez que eu ia colocar comida para ela. Ela viveu pouco mais de oito meses.

O tempo passou. Meu bebê cresceu e, conforme Daniella havia previsto, Milú ficou acinzentado. Pode parecer protecionismo, mas eu sinceramente acho que nunca vi um poodle tão ou mais lindo que ele. Tinha pernas compridas e porte elegante, olhos azulados (especialmente sob a luz do sol) e focinho médio – nem curto, nem comprido. Era a mistura perfeita de seus pais: o corpo esguio de Tutti com a cabeça delicada de Petty. Até a cor era misturada: Petty era pretinha e Tutti era branquinho. Aquele filhote que não tinha sido escolhido por ninguém acabou se tornando um belo cãozinho. E não era só a mãe babona que dizia. Era comum sermos abordados por pessoas na rua, perguntando se eu o deixaria cruzar com suas respectivas cachorrinhas, quando estas entrassem no cio. Eu aceitava, mas pena que isso nunca acabou se concretizando.

E por falar em beleza, digo que bonita, mesmo, era a amizade que ele mantinha com os cachorros vizinhos. Era simplesmente apaixonado pela pinscher Lua e a cocker spaniel Aline. E tornou-se um amigo querido de um filhote de são bernardo, cujo nome confesso que esqueci agora. Conforme o tempo passava, seu amiguinho, que inicialmente era menor que Milú, foi crescendo e ficou cerca de sete ou oito vezes maior que ele. Mas continuava brincalhão, e adorava meu bebê. Numa de nossas saídas, o pequeno-grande amigo avistou Milú de longe. E, dali mesmo, pegou impulso e veio correndo em nossa direção, com a intenção de brincar. Mas ele não viu a correia retrátil esticada, e nela tropeçou. Com seu peso e sua força, ele obviamente nos carregou. Milú, eu e ele (preciso me lembrar de seu nome!!! Seria Zeus?) rolamos no chão. Ninguém se machucou, mas, aparentemente, o ego de Milú foi ferido. Desde então, ele ficou bastante sentido com nosso amigo, e não brincou mais com ele. Quando o grandão se aproximava, Milú latia e rosnava. Infelizmente, não o perdoou mais. E seu amigo ficou sem entender, tadinho.

Certa vez, Milú adoeceu. Pegou resfriado. Mamãe, com dó do pequeno neto, resolveu deixá-lo dormir em seu quarto. Todas as noites, até que melhorasse. E depois disso também.

Quando viajávamos e ele não podia ir, eu o deixava em hotéis para pets. Numa dessas empreitadas, voltamos à noite e fomos buscá-lo. Foi uma verdadeira confusão quando percebemos que ele estava sozinho, sem ninguém cuidando. Do lado de fora, chamávamos por algum funcionário. De lá dentro, Milú ouvia e chorava por nós. Mas ninguém aparecia. Depois de várias ligações, finalmente apareceu um rapaz, que parecia estar dormindo, apesar de o estabelecimento divulgar seu funcionamento 24h. Papai brigava como se fosse um de seus filhos preso ali. Numa outra ocasião, ele adoeceu logo após sua estadia em outro hotel. Contraiu parvovirose. Passou alguns dias internado, e meus pais não permitiam que eu fosse visitar. Papai chegou a conversar comigo a fim de me preparar para perder Milú, uma vez que ele estava realmente muito debilitado. Mas meu pequeno guerreiro venceu a doença. E voltou para mim.

Certas vezes, ele pôde viajar também. No carro, ele ficava inquieto. Ia para frente, voltava para trás. Púnhamos um travesseiro para ele, mas não o contentava. Chorava porque não conseguia se acomodar. E nós chorávamos porque ele não nos deixava dormir.

Se eu viajasse de avião, ele ia em sua caixinha. Eu adiava ao máximo a aplicação do calmante, e mesmo assim o efeito passava antes da hora. Houve uma vez em que o vôo atrasou horrores e eu sofri a viagem inteira, porque sabia que ele ia sofrer também. Quando foi despachado na esteira de bagagens, ele chorava com sofrimento. E eu chorei com ele, por ter causado dor ao meu bebê. Foi a última vez que eu o submeti a essa experiência. Depois disso, era preciso me programar para viajar somente quando houvesse alguém em casa, para que pudesse cuidar dele. Não houve mais viagens em família.

Mais alguns anos se passaram. Eu entrei na faculdade. Meus pais se mudaram em definitivo para outra cidade. Meus irmãos e eu nos mudamos para um apartamento. A escolha do imóvel levou em conta meu filho. Não dava pra ter carpete e a área de serviço precisava ter espaço para o seu jornal. Era a segunda mudança de casa por que Milú passava, e ele parecia gostar, apesar de obviamente não ser tão bom quanto morar em uma casa. E, para observar a vida lá fora, ele adotou um canto especial na sala: o encosto do sofá, que ficava exatamente na altura da janela.

E ele viu a vida passar. Aquele exato ponto no sofá ficou completamente gasto. Quando um cachorro grande passava por ali, ele se levantava e latia com fúria. Naquela quadra, havia uma turma de “pitboys”. Então, ele realmente se ocupava enquanto eu não estava em casa. Pobres vizinhos.

Os pitbulls eram uma atração à parte. Seus mirrados donos posavam de fortes adultos, quando todos sabiam que, na verdade, os cachorros é que os carregavam. Um simples puxão na correia arrastaria qualquer um daqueles adolescentes magrelos. Mas eles, que optaram por ignorar essa realidade, resolveram montar uma verdadeira academia ao ar livre para seus cães. Era comum passar pelo gramado da quadra e notar algum daqueles pitbulls pendurado apenas com a força de sua poderosa mandíbula. Detalhe: geralmente ele estava sozinho, sem a supervisão de sequer uma pessoa que pudesse segurá-lo ou comandá-lo.

Todos temiam esses animais. Não apenas por sua fama de maus – até porque os bichos, tais como os humanos, não têm má índole –, mas porque seus ridículos proprietários os treinavam para o ataque. Certa vez, um deles avançou em um chow-chow no meio do estacionamento. Os ganidos da vítima chamaram a atenção de todos e atraiu os vizinhos às janelas – inclusive eu. A maioria gritava e pedia para alguém matar o pitbull a pauladas – inclusive eu. Como era de se esperar, os comandos do dono não surtiram o menor efeito sobre o cão. Suas puxadas na correia, idem. Até que ele resolveu dar pauladas na cabeça do próprio cachorro. Uma, duas, três pauladas. E seu cão branco se mantinha imóvel, com os dentes fincados na cabeça do outro cachorro. Quatro, cinco, seis pauladas. E só então ele largou a vítima, que saiu sangrando e chorando. De suas janelas, as pessoas continuavam gritando e pedindo a morte do agressor. O chow-chow sobreviveu.

Nas semanas seguintes, o menino parecia humilhado. Seu cachorro usava focinheira. E, mesmo trajando tal equipamento, o cachorrão continuava valente. Até que um dia o garoto resolveu tirar a focinheira de seu cão. E, tempos depois, essa decisão me afetou.

Como eu fazia todos os dias, saí com o meu bebê. Dei algumas voltas pela quadra e, quando estava chegando a minha portaria, notei em visão periférica que algo se movia rapidamente em minha direção. Cerca de dois segundos foram o tempo para olhar para meu lado esquerdo, perceber que se tratava do pitbull branco solto, puxar a correia do Milú para pegá-lo no colo e protegê-lo com meus braços e corpo, até que o grande cão batesse rudemente na minha perna e, frustrado, desse meia-volta. Ou seja: aquele animal estava pronto para atacar o meu filho. Gritei como nunca com aquele moleque e falei para ele nunca mais chegar perto de mim ou do meu cãozinho com aquele monstro. Que ele devia colocar uma correia naquele bicho. Porque se ele se aproximasse novamente, eu o mataria sem o menor pudor e teria toda a vizinhança ao meu lado. Nunca mais fomos incomodados por aquela dupla.

Mais tempo se passou. Eu me tornei adulta; comecei a trabalhar o dia inteiro. E o Milú se manteve firme e forte. Eu ficava triste por deixá-lo sozinho a maior parte do tempo. Era realmente uma judiação. E mesmo assim ele me recebia com festa todos os dias. Ele reconhecia o ruído dos carros da casa. Sentia quando a gente se aproximava da porta. E aprontava uma algazarra.

Uma vez, fui a primeira a chegar em casa. Ele permaneceu em silêncio. Vi as coisas reviradas. Demorei a notar e admitir: tínhamos sido roubados. Invadiram o apartamento e levaram muita coisa. E, ainda por cima, chutaram meu cachorrinho. Por várias semanas, Milú ficou com suas costas sensíveis e chorava, dependendo de como eu o segurasse ou fizesse carinho. A cada novo ganido, mais eu xingava aqueles ladrões fdp. Mas ele ficou bem novamente.

Sim, meu “bebêbze” (eu me acostumei a chamá-lo assim) sempre foi duro na queda. Até quando ainda era literalmente um bebê, e meu irmão o derrubou acidentalmente. Tomou um verdadeiro susto, mas não se machucou. Olhando para trás, percebo como esse pequeno poodle tinha a força de um rottweiller.

Nós nos mudamos de novo. Outro apartamento que Milú adorou conhecer. Assim que entrou em casa pela primeira vez, correu e explorou todos os seus cantos. E fez questão de marcar território, se é que vocês me entendem.

De vez em quando, “escapulia”. Fosse para chamar atenção ou por birra, mesmo, ele fazia xixi em lugares impróprios. Nesses casos, ele geralmente entrava no quarto do tio e “batizava” a cadeira. Ele sabia que isso acabaria resultando numa gritaria monstruosa, e parece que era exatamente isso que esperava. Esse feio hábito começou a ficar tão costumeiro, que meu irmão decidiu bloquear a porta. Primeiro, encaixou um colchão no batente. Depois, inventou uma trava prendendo a porta do quarto à porta do armário. Ele não gostava de fechar totalmente a porta porque achava que abafava demais o ambiente.

Já no quarto da tia, ele gostava de entrar para vasculhar as coisas. Fuçava tudo à procura de balas, doces, salgadinhos. Jamais se cansou de levar broncas dos tios. E, a cada nova “arte” do Milú, eu, a mãe, tinha que ouvir algum sermão de seus irmãos mais velhos. Quando aprontava, ele se escondia com o rabinho entre as pernas, antes mesmo de percebermos a burrada.

Aliás, ter um bichinho como ele prova que a comunicação não precisa de palavras. Suas atitudes falavam muito, e eu, como mãe, sabia e entendia quando ele queria dizer alguma coisa. E vice-versa. Se a família começava a trocar de roupa, ele já se entristecia porque sabia que ia ficar só; ou se empolgava, querendo se juntar a nós. Se começava a choramingar próximo a mim, era para pedir a troca da água. Se se escondia à toa, era porque tinha feito algo errado. Se um de nós começasse a andar pela casa e ele corresse desesperado na nossa frente, era porque tinha escondido alguma guloseima e não queria que encontrássemos (mas ele nos mostrava, meio que dizendo: “olhe, é meu e eu guardei aqui... não mexa, ok?”). Se eu apontava em silêncio para alguma direção, ele entendia que era para se retirar. Ele me compreendia só de olhar para a minha cara.

Nossos hábitos não eram bem-vistos por alguns. Na minha opinião, só tendo um cãozinho para entender. Sem minha mãe por perto, ele entendia que eu era sua dona. Eu chegava em casa e ele fazia festa. Era meu “rabinho”; me acompanhava para lá e para cá. Às vezes, isso chegava a me incomodar. Quando eu estava estressada ou triste, e queria ficar só. Mas seu simples olhar me aliviava aos poucos. Muitas vezes, ouviu em silêncio minhas queixas, meus lamentos. Testemunhou meus choros. É claro que não entendia minhas palavras, mas respeitava meus momentos, apenas se juntando a mim e me pedindo carinho. Eu o beijava e o deixava me beijar.

Eu conversava com ele como se ele fosse me responder. Frases como “viu só que coisa mais linda, bebêbze?” ou “sabe o que me aconteceu hoje, meu amor?” eram comuns. Loucura? Talvez. Mas ele era minha companhia, meu amigo, meu neném. E compartilhava momentos e segredos que ninguém mais sabia ou se interessava. Dormia em minha cama (apesar de ter sua própria, também no meu quarto) e se ajeitava grudado a mim quando eu me sentava ou me deitava. Inúmeras foram as ocasiões em que, do nada, deitou-se com a barriga para cima, só para ganhar um afago. Ou se posicionava próximo a minha mão quando eu dizia: “quer coça-coça?”. Era a senha para ganhar um cafuné. E ele adorava se eu ficava horas e horas mexendo em seu pescoço, cabeça e orelhas... então, ele ia fechando os olhinhos e caindo para o lado, preguiçoso.

Ele gostava de se sentar com as pernas abertas. E, às vezes, sentava-se também com as patinhas para um só lado, meio tortinho. Quando estava dormindo gostoso, deitava-se com a barriga para cima e “se espalhava” no chão. Quando estava realmente cansado, roncava alto e nos arrancava gargalhadas. Às vezes, soltava gases. Era tão podre que eu brincava que ele era tóxico. Ocasionalmente, fazia barulho e ele não entendia de onde via aquele som. Ele se assustava, levantava-se num pulo e olhava para trás, como que perguntando: “quem fez isso?”. Outras vezes, ele soltava seu pum silenciosamente, saía do recinto e deixava apenas o rastro fedorento, nos fazendo reclamar. Na época, ele comia de tudo, e adorava frutas. E pepino, então? Ele não podia ver minha mãe pegando um na geladeira, que se posicionava com as orelhas em pé. Dava a patinha e fazia “tim” (sentar-se apenas sobre as patas traseiras), pois entendia que, fazendo seu “showzinho”, ganharia o que quisesse. E funcionava: ele recebia as cobiçadas fatias, que roía feliz. Banana também rendia algumas peripécias.

Deitava-se em posição de sapo, com as patas completamente abertas, quando sentia calor. O chão era seu ar condicionado particular. Alguns minutos depois, ele se levantava e se mudava para um lugar geladinho. E, quando este esquentava com seu calor, ele trocava novamente. Freqüentemente deixava no chão marcas de vapor com o formato de suas patinhas, assim que se levantava. Mas meu bebê também sentia frio, principalmente quando estava tosado. Quando ele se enrolava demais ou escolhia lugares mais fofinhos para se deitar, era porque estava desconfortável. E lá ia a mãe superprotetora vestir uma roupinha quente em seu filhinho. Inicialmente, ele tinha duas e, com o passar dos anos, ganhou mais: a blusa do São Paulo, do Batman (“bátimo!”) e, quando já estava velhinho, um casaquinho enviado do Japão. Meus amigos diziam que era muita frescura. Mas eu nem ligava. E ele parecia gostar, pois reclamava quando eu tentava despi-lo depois.

E os dias chuvosos, então? Eu morria de rir com uma invenção que mamãe e eu tivemos: capa de chuva descartável. Eu pegava um saco plástico de supermercado, cortava em locais estratégicos e vestia no Milú. Um saco menor servia de chapéu. E o engraçado é que ambos cabiam perfeitamente! Seus 6kg ficavam bem protegidos e sequinhos sob a criação fashion – e reciclável. E ele podia sair livremente, sem precisar dividir o guarda-chuva comigo.

Dos passeios diários, Milú trouxe pulgas para casa. Vez ou outra, mamãe, papai e eu o pegávamos para catar e matar seus pequenos predadores. Não havia Frontline que desse jeito nessa praga, que inicialmente era indefesa. Até que tivemos um surto de coceiras em casa. Aí, comprei veneno e passei por toda a casa. Milú tomou vários banhos com xampus especiais e remédios. Depois disso, ele nunca mais voltou com “amiguinhos” para casa.

Eu adorava pegá-lo no pet shop após um banho ou tosa. Ele chegava ornado com uma gravatinha e ficava desesperado para me encontrar. “Salve-me”, seus olhos me pediam. Ora, na realidade, eu era a causadora dessa moléstia. Mas ele se agarrava no meu braço – sim, ele literalmente se segurava, entrelaçando suas patinhas em meu braço quando eu o pegava no colo. E eu ficava dias e dias fungando seu cangote, porque ele ficava muito, muito perfumado. Uma fofura, principalmente quando estava bem peludinho. Lembrava aqueles fluffies. Meu ditian disse, certa vez, que o Milú parecia um “kumá” (urso, em japonês).

Uma amiga brincava que a pinta que tenho na palma da mão retratava o Milú em minha vida. Eu adorava repetir isso também, porque fazia parecer que tínhamos sido feitos um para o outro.

Meu bebê era bonzinho, mas tinha seus momentos “pimentinha”. Ele não era exatamente o que se pode chamar de educado. Latia demais, principalmente para expressar alegria. Nos últimos anos, latia até mesmo para a sua ração, fazendo festa com ela. Ele pegava um ou dois grãos e jogava para o alto, para eles quicarem. E bradava com felicidade quando isso acontecia. Pulava nas visitas e grudava nelas como se, coitadinho, não ganhasse carinho de ninguém. Fazia dengo, obrigava-as a fazer cafuné nele e resmungava quando elas paravam de acariciá-lo. Ele me matava de vergonha, principalmente de quem não era muito fã de cachorros. Mas ele não se importava e pentelhava todos, sem preconceito. Na rua, gostava de provocar os outros cachorros, em especial os grandões. Talvez ainda fosse pelo trauma daquele são bernardo. Talvez ele simplesmente fosse sem noção. Mas passei por alguns sufocos graças a essa “bravura” excessiva.

Uma tarde, em um passeio pela quadra, um pequeno vira-lata se aproximou e, sem nenhum aviso de estranheza, mordeu Milú. Primeiro, tive vontade de chutar aquele pulguento pra longe, cuja dona era uma completa tapada. Depois, reparei que meu bebê sangrava muito. Um dente machucou o crânio e outro furou pouco menos de 1cm abaixo do olho direito. Era esse segundo ferimento que sangrava mais. Deixei aquele bicho feio pra lá, aninhei Milú em meus braços e ele permaneceu imóvel enquanto eu corria para a janela de casa. Ali embaixo, gritei para minha irmã e minha mãe nos acudirem. Eu chorava, coberta de sangue, e elas se assustaram. Elas pegaram a chave do carro e rumamos ao veterinário.

As vacinas de Milú estavam em dia, o que significava que ele não corria perigo de contrair raiva, por exemplo. Foram quatro pontos em meu bebê, que continuava quietinho. Quando voltamos para casa, fui tirar satisfação daquela anta que era a dona do cachorro. Falei sobre o trauma e as despesas causadas por seu animal. E ameacei, em tom de déja vu: se aquele cachorro chegasse perto mais uma vez do Milú, eu o chutaria, sim. E o mataria, se necessário fosse. Sei que cães têm atitudes imprevistas, e era exatamente por isso que eu saía com o Milú preso a uma correia. Recomendei que, se ela tinha amor por seu bicho, que fizesse o mesmo, ou eu não responderia pelos meus atos. Era a segunda vez que eu ameaçava o dono de um cachorro em prol do meu pequeno. Eu me sentia uma leoa, protegendo minha cria com garras e dentes. E ai de quem tentasse pôr isso à prova.

Nunca mais vi esse vira-lata na rua.

Não sei se Milú ficou traumatizado, mas confesso que eu, sim, fiquei. E, conscientemente ou não, diminuí nossas saídas. Nos últimos anos, praticamente não o levava mais para passear. Levei muitas broncas por isso. Meu irmão, meus pais, meus amigos, meu namorado. Ouvi sermões que eu sei que faziam sentido. Meu medo não fazia, mas, assim como o amor que eu sentia por ele, não tinha explicação. Existia e pronto. E não havia discussão que me fizesse mudar de idéia.

Mais anos se passaram. E ele continuou ao meu lado. Sua presença era algo que eu tinha como certo, independente da hora. Mesmo assim, a rotina de chegar em casa era, muitas vezes, motivo de gritaria. Meus irmãos ou eu acabávamos nos exaltando, solicitando silêncio. Eram noites ou madrugadas em que a gente queria evitar atrito com os vizinhos. Mas o engraçado é que, muitas vezes, nossas reclamações ultrapassavam em muitos decibéis a saudação do meu pequeno neném.

A velhice afetou sua audição. Com cerca de onze a doze anos de idade, comecei a perceber que ele não me atendia como antes. Meus comandos foram ficando cada vez mais altos, até que minha voz já não era mais suficiente. Eu tinha que chamar sua atenção batendo palmas. E ele atendia, não sei se por obediência (que, vamos combinar, nunca foi seu forte) ou porque minhas palmas são realmente muito barulhentas.

Assim como seus ouvidos, os velhos olhos também se cansaram. Aliás, estes começaram a enfraquecer muito antes, devido à catarata, mas seu declínio foi bem mais lento. Quando já estava bem velhotinho, ele ficava confuso quando o sol se punha. Já não conseguia descer ou subir na cama à noite, e chorava quando se sentia inseguro em saltar no escuro. Por isso, acostumou-se a dormir no chão. Nos últimos tempos, ele não conseguia me seguir à noite, a não ser que eu acendesse as lâmpadas. E choramingava quando não conseguia me enxergar, mesmo sabendo que eu estava ali.

A idade afetou seus sentidos. Mas o latido continuava firme e forte, para nosso desespero.

Quanto mais velhinho ele ficava, menos atenção eu dava a ele. E menos ele solicitava, também. Eu não percebia o que estava fazendo, mas, no final, parece que acabei concretizando exatamente o que minha mãe me alertou no início: eu “enjoei”. Como se não bastasse não sair mais como antes, eu também já não o escovava. Não dava mais banhos tão freqüentes. Mas, é claro, cuidava de seu essencial: comida, água e carinho, todas as noites e todas as manhãs. Milú continuou sendo meu bebê, apesar de sua idade avançada. Tornou-se comum ouvir indagações surpresas de meus amigos: “ele ainda está vivo?” ou “ainda é aquele cachorro?”. Eu me divertia com isso. E os desconhecidos massageavam meu ego quando diziam: “o quê? Ele tem 14 anos? Mas parece um filhotinho...”. E era a mais pura verdade. Cego ou surdo, ele continuava meigo. E empolgado, saltitante, aloprado.

Em todo esse tempo, ele aprendeu e desaprendeu muita coisa. Mas, acima de tudo, ensinou. Ele me ensinou como amar um bichinho tal qual se ama uma pessoa. Há quinze anos, eu não sabia o que era isso. Eu não poderia compreender, se não vivesse isso na pele.

Hoje, às duras penas, aprendi também a perder. Da mesma forma que não era capaz de imaginar o tamanho do amor de se ter um cãozinho, eu não suspeitava a extensão da dor de ter que dizer adeus. Eu sabia que ele estava envelhecendo e trabalhava isso em minha cabeça. “Ele vai morrer algum dia”, eu pensava. Mas o cérebro definitivamente não manda no coração.

Um dia, entrei em meu quarto e vi o papel do chocolate, ao lado de minha bolsa, aberta. Eu conhecia essa mania feia do Milú de roubar comida de nossas bolsas. Então, naquele dia, quando cheguei em casa, guardei a bendita sobre minha mesa. Mas o pequeno larápio puxou a comprida alça, abriu o zíper com o focinho e encontrou a barra, daquelas de 180g. E botou tudinho pra dentro. Nem briguei com ele. Apenas recolhi a embalagem e joguei fora.

Naquela noite, ele vomitou bastante. Claro, a quantidade de açúcar era anormal. E eu só fiquei esperando que ele expelisse todo o chocolate, como acontecia quando ele ingeria algum petisco roubado.

Só que ele não voltou ao normal. Mesmo depois que todo o chocolate foi expulso de seu organismo, ele não retornou a sua rotina. Não se alimentava nem bebia mais água. Mas tinha diarréia e continuava vomitando. Quando ele começou a enfraquecer, meu irmão me ligou. “Milú tá muito mal. Ele está sujando a casa inteira.” Pedi licença e o busquei para levar ao veterinário.

Notei que, além de fraquinho, ele estava assustado. Tremia muito quando eu aproximava minha mão, como se estivesse com medo. Fazia menção de morder, como quando se sentia ameaçado. Mas era diferente. Ele parecia não estar entendendo mais nada.

O veterinário ouviu minha história e achou melhor interná-lo, até porque Milú estava muito debilitado. Mas me acalmou, dizendo que o chocolate não tinha nada a ver com o quadro. Ele seria tratado com soro.

Mesmo sensibilizada, voltei ao serviço e liguei no fim da tarde, quando os exames ficariam prontos. O plantonista disse que os resultados não acusavam nada, mas que ele continuava prostrado. Resolvi ir visitá-lo na mesma hora e permaneci ali, fazendo carinho e conversando com meu bebê por cerca de 40 minutos. Eu pedia, aos prantos, para ele melhorar e voltar logo para mim. Ele se apoiava em minha mão e ia escorregando, até se deitar relaxado, mas com o bumbum lá em cima. Eu achava graça de sua pose e fazia mais cafuné no meu bebê.

Saí de lá sentida, pedindo muito para que ele ficasse bom novamente. Como naquela última vez em que ele ficou internado. Mesmo sabendo, no fundo de minha alma, que isso era muito improvável.

Na manhã seguinte, acordei atrasada para o trabalho. Do contrário, teria ido passar mais um tempinho com meu filho. Mas então pensei comigo mesma: “ele está cansado. Vou lá no fim do dia, como fiz ontem”. Quando cheguei ao serviço, recebi a ligação. Conforme o veterinário falava, eu chorava. Meu bebê tinha falecido durante a noite.

Perdi meu rumo e não conseguia responder a quem me perguntava o porquê do meu choro. Só me lembro de dizer que meu cachorrinho tinha morrido e sair em direção à clínica. Eu estava realmente arrasada. Meu coração doía. Sempre fui muito chorona, mas fazia anos desde a última vez que solucei daquela maneira.

O veterinário foi tão atencioso quanto podia, naquele momento. Eu pedi para ver meu filhote e ele questionou: “tem certeza?”. “Sim”, eu respondi. Eu precisava me despedir dele. E o fiz. Abracei seu corpinho, chorei mais, conversei com ele. E também o beijei pela última vez, até que finalmente criei coragem para verbalizar o sofrido “adeus”.

Não consegui voltar ao trabalho e quis ficar sozinha. Se, por um lado, recebi conforto de muita gente querida, por outro, fui criticada por quem não entende esse tipo de ligação. “Todo esse drama por causa de um cachorro?!?!?” Sinceramente, não guardo raiva dessas pessoas. Tenho dó. Porque elas ainda não tiveram a felicidade de experimentar um amor puro assim. Não compreendem que amizade não conhece espécie. E que conviver diariamente com um companheiro, por quinze anos seguidos, não é o mesmo que passar quinze dias ou quinze horas com alguém. Desejo a elas – e a todos os que compartilham meu luto – uma relação assim, como a que eu tive com Milú. Todo mundo merece ter um amigo incondicional. Eu agradeço a Deus pelo privilégio que tive de ser sua mãe desde os seus dois meses de vida. E de amá-lo assim.

A dor é imensa, mas como poderia ser diferente? Acredito no equilíbrio e, para contrabalancear um carinho daquele tamanho, só mesmo uma tristeza nessa dimensão. Mas não me arrependo desse apego. Porque, mesmo que ele esteja longe, lá em cima, enlouquecendo São Pedro com seu latido e seus pulos, próximo ao portão do céu, eu estou aqui, sentindo-me viva com nossas memórias. E permitindo que meu coração se cure após a perda de um pedaço tão importante de mim, da minha família, da minha história. Essa dor há de passar.


Para o meu amorzinho de ontem, hoje e sempre. Meu primogênito, sinto sua falta e sempre sentirei. Descanse em paz, velhinho.

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