sexta-feira, 4 de setembro de 2009

De dentro

Há fatos, coisas, momentos e pessoas capazes de marcar uma vida. Às vezes, uma simples frase dita (ou não dita) fica presa na lembrança para sempre. Ou nos fazem mudar sem nem percebermos.

Nunca vou me esquecer, por exemplo, do jeito que minha mãe ligava pra gente toda terça-feira, lá do Japão. Foi um ritual que ela criou nesse dia específico, porque era quando ela folgava no trabalho. Muitas vezes, não havia nada a dizer. Ela só queria nos escutar. Antes, quando ela e papai ainda estavam em São Paulo (e nós em Brasília), eram os domingos. Os assuntos eram variados, e nessas conversas houve choros e risos. Houve revelações. Houve fofocas. Houve confidências. E, principalmente, houve bate-papos inocentes e despretensiosos.

Quando papai ligou em casa numa quarta-feira à noite, eu respondi feliz (e ingênua).

- Oi, pai! Tudo bem?
- Tudo nada, filha. Sua mãe tá no hospital.

Meu mundo desabou. A notícia do derrame me esmagou. Eu não sabia o que pensar e comecei a chorar, só de sentir o desespero do meu pai. Ele, sozinho no hospital, esperando notícias da esposa desacordada. No outro lado do mundo, eu, sozinha em casa, queria virar vento pra abraçá-lo.

Ele desligou o telefone e eu me encolhi. Minha irmã estava na Dinamarca; tinha viajado dois dias antes para o casamento de sua amiga. Meu irmão estava na rua e eu não tive coragem de dar a notícia pelo telefone, porque sabia que ele se exaltaria. Eu não achava prudente que alguém que sofresse como eu estava sofrendo dirigisse sozinho de volta para casa. Então esperei. E, algumas horas de lágrimas depois, ele chegou.

E eu contei. E ele me abraçou. Como há muito não fazíamos, pela natureza de nossa relação. Então, depois de vários minutos chorando juntos, resolvemos ligar para nossa irmã. Ainda bem que ela tinha uma irmã de coração em quem se apoiar, também.

No dia seguinte, como que por milagre, mamãe acordou. E sofreu sua primeira cirurgia craniana.

Depois de um tempo, ela foi se recuperando. No decorrer dos meses, voltou a conversar, a se sentar, a comer sozinha, a andar. A subir escadas! Mas não voltou a ser a mesma. Porque, enquanto todo o resto voltava, a memória não quis.

Ela já não se lembra mais da nossa história. Ela nos reconhece, mas não é mais quem se lembrava dos nossos aniversários dois meses antes, para providenciar os devidos presentes. Não é mais quem nos liga às terças, nem nunca.

Ela conta histórias que não aconteceram. Tudo vem da cabeça dela, e não do passado. Algo muito injusto para quem tinha uma memória invejável.

Falar assim é até pecado. Porque ela está viva e vai nos ver casando, se é que isso um dia vai acontecer. Vai conhecer nossos filhos, seu grande sonho. Aliás, naquela noite de abril, enquanto ela não acordava, eu mentalizava: "não é hora de ela ir. Ela ainda não conheceu os netos que sempre quis". Ela vai vir morar com a gente.

Eu não quero ser mal agradecida. Nem incompreendida. Entendam: minha felicidade não cabe em mim por ela continuar convivendo com a gente, aqui nesse mundo. E por voltar viva para o Brasil, pedido que fiz secretamente assim que ela entrou naquela sala de embarque em Guarulhos, em 2007. Mas, involuntariamente, também sinto uma profunda tristeza de pensar que a alma dela pode não retornar jamais.

Afinal, ela vai "voltar" ou "começar" a viver com os filhos? Não sei. Mas tenho esperança de que tudo correrá bem. Com ela, com ele e conosco.

Aquela mãe vai viver pra sempre em mim. E, claro, também a nova mãe que teremos, assim que ela chegar a nossa nova casa. Mais um marco em nossas vidas.

E ontem, quando minha contagem regressiva para a sua volta chegou aos vinte dias, tive uma grata surpresa. Uma injeção de ânimo. Um fôlego, uma esperança. É vendo pessoas vencedoras, que sofreram mais do que podemos imaginar, superando (também) melhor do que se pode esperar, que percebemos o quanto podemos ser fortes.

Irônico, isso. A fortaleza de uma pessoa ser capaz de nos fazer ver nossas fraquezas. E fazer disso um estímulo para sermos pessoas melhores.

Obrigada, Cris. Disso eu também nunca vou me esquecer.

2 comentários:

  1. Rê,
    quase morri de tanto chorar agora...
    Guardando as devidas proporções, com os devidos infortúnios da vida com as nossas mamães, entendi e consegui sentir todos os sofrimentos e questionamentos que vc aqui expôs.
    Muito lindo!!!
    Coragem, amiga!

    ResponderExcluir
  2. Você que é linda, amiga!
    Brigada pela força!

    ResponderExcluir